Gritos

Era implacável. Organizava bingos em prol das velhinhas do bairro. Arrecadava roupas usadas para os menos favorecidos. Era uma defensora dos animais. Não havia criança que não conhecesse a sua generosidade. Era do tipo dos grandes gestos, dos grandes amores, das grandes paixões.

Mas algo gritava quando poucos estavam vendo (e ouvindo). Era ali, nas miudezas, que se revelava. Era extremamente agressiva com aqueles que lhe eram “inferiores” no trabalho. Era deselegante quando achava que seu ponto de vista era o mais importante. Ela estava certa, sempre certa. E o mundo, claro, andava todo ao contrário.

E sua vida era vivida em prol disso: consertá-lo. As mazelas sociais deveriam ser extirpadas. As desigualdades com ela desapareceriam. Todos seriam felizes, alimentados, vestidos. Menos aqueles que conviviam com ela mais de perto. Porque esses a conheciam sem as belas palavras. Esses a conheciam sem as roupas de boa moça. Sem a aparência de bondade.

E era tudo tão incoerente, tudo tão discrepante, que no trabalho ninguém podia imaginar quem ela era no dia a dia. E no dia a dia, ninguém acreditaria se dissessem o que ela realmente fazia.

Vivia a vida assim: entre sussurros e gritos. Entre grandes gestos e quase invisíveis mesquinharias. Entre quem fazia de conta e quem realmente era. Entre a aparência e a essência que, por mais que tentasse sufocar, sempre vinha à tona para assombrá-la.

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